a história de um olhar



Aqui sentada, sobre as pernas cruzadas e as tábuas corridas do soalho da casa, assisto ao minguar da luz e dos seus reflexos de fim de tarde sobre as fachadas e as janelas dos prédios indistintamente antigos da rua. As cores parecem vagas e irmãs, banhadas a esta mesma luz, e só os contornos das varandas de ferro conseguem estimular o olhar a descobrir as diferenças.

Penso no olhar.
Fascina-me o olhar.
Fascina-me a diferença registada pelo olhar e o olhar que regista a diferença.
Fascina-me o fio de vida que o olhar move em direcção ao outro.
Fascina-me a teia de fios que o olhar cospe no pensamento e que recolhe no olhar que é devolvido.
Fascina-me a violência da palavra que rasga os nós do silêncio e que se enlaça nos fios breves do momento, suspenso no ar.

Olho para o tecto, quase etéreo de tão branco ser, e entretenho-me a pensar como o olhar é amplo, bem mais amplo que o soalho da casa, onde posso estender-me. E é quase instintivo o assustar-me na percepção de que o olhar pode prender-se no degrau das portadas da varanda, por onde a chuva, quando é muita, costuma entrar na estação que se aproxima.

O olhar é o parto.
O instinto maternal do pensar.
E o êxtase em fusão descontrolada do sentir.

O olhar, que não o ver, rompe as entranhas do instinto e desafia a gravidade no mergulho da realidade existente. Não cai e grita quando tocado pelo olhar do outro, agita-se se nele colhe a diferença às mãos cheias e abocanha o receio de sentir, que o prende no seu peito.

O fechar os olhos, eufemismo de morte, é negação do acto primeiro e simultaneamente a recusa do pensar, o medo absurdo de o fazer, o espanto da fuga do confronto do olhar e do pensar; em suma, do desmamar do olhar ou do passo seguinte.
O olhar é o sorver ruidoso e instintivo que o ser, bolsa macilenta e amarelada, bílis de preconceitos, receios, hesitações e historial de fugas, corrói ao digerir a medida do tempo que avança e abomina aleitar.

E, no deslizar frenético dos instantes, o olhar acorrenta-se à palma da mão que agarra no ombro a pergunta que ali traz, arrasta-a, a galope dos dedos, pescoço acima e amarrota-a na força dos cabelos e dos papéis em que a escreve a tinta das pupilas. É então que as pupilas se fecham no ardor das palmas das mãos que resvalam no esfolado das pernas, no morder da pele e no forçar dos pulsos colados ao chão, até ao desprender desse frémito de luz que, de saliva, lama, suor e cor se erige num grito e, no derradeiro silvo, estremece e devolve, por fim, o olhar.

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