Wiborg

É sempre difícil perder alguém que temos no coração.
Hoje foi difícil ter essa notícia ao acordar.
Raios partam, foi ainda mais difícil começar a usar a forma verbal do passado para falar de ti.

Para uns quantos milhares que vêem o Telejornal, acabaste por ser uma nota na parangona da necessidade de repetição de um mega-julgamento em que participavas.

Sei que foste muitas coisas. Para muita gente. Como só tu sabias ser.

Para mim, minha amiga, foste uma das três pessoas que me impediu de enlouquecer na comarca de primeiro acesso - e que difícil que ela era!

Nesses longos meses em que vivemos em lugarejos separados apenas por uma dezena e meia de kms, foste a voz do outro lado do telefone fixo quando havia detidos ou quando nos queríamos rir de coisas perfeitamente disparatadas ou até queixar do calor infernal que fazia, lá no meio do monte, ou dos camiões carregados de troncos de madeira que entupiam a estrada de uma faixa só.

Foste aquela curva manhosa à saída do IC8 para entrar na vila, numa estrada lúgubre que parecia abandonada, sem passeios, de fábricas cinzentas fechadas, que dava acesso à tua casa de função.

Ah, e também foste aquela casa de função de verdes vitrais antigos no hall de entrada, a condizer com os móveis dos anos 60 ou 70, já nem sei bem, e os poeirentos e puídos sofás de veludo - verde, pois então! tudo a condizer! - da tua sala que, quando nos sentávamos, deixava no ar o aroma a bafio, garantia da vetusta idade do mobiliário.

E, claro, como podias deixar de ser os jantares semanais no Manjar do Marquês, onde, entre o arroz de feijão e um panado ou uma patanisca, pousávamos os processos das dúvidas...?

E tu, uma mulher feita, já na altura, com as tuas frases de pragmatismo lapidar, davas-me sugestões, a mim e à João, miúdas, sem experiência de vida absolutamente nenhuma, enquanto, ao mesmo tempo que punhas também as tuas dúvidas, arengavas acerca dos 'basaltos', nome que deste aos nativos da tua comarca - sim, porque, dizias tu, se bem me lembro, 'isto não é coisa de se dar um pontapé numa pedra e eles saírem de lá debaixo; eles são é as próprias pedras!'.

Mas também eras a mulher que te preocupavas com os 'basaltos' o suficiente para me ligar a pedir que os deixasse subir o monte e ir ao meu atendimento ao público, porque isso era coisa que não existia na tua comarca. E eu deixava...

E eras a gargalhada que se ria quando eu entrava no teu gabinete ensolarado, sempre de janela escancarada e te dizia que, antes de seres movimentada, ainda ias matar as plantas, tão bonitas, que lá te tinham posto, com o teu fumo. Na verdade, na verdade, e como dizias, eu tinha era raiva de os meus funcionários não porem plantas no meu gabinete...ah, pois era!

Eras a espiral de fumo que recordo a sair-te do cotovelo da manga da camisola de gola alta preta, que tantas vezes te vi pousar na mesa ou no braço do sofá, com um cinzeiro por perto, a exalar piadas absolutamente desesperantes, de tão certeiras que eram, e que desarmavam qualquer resposta que não fosse o arrancar-nos, a mim e a todos, um sorrisos de braços baixados.

Eras tudo isto. E tenho a certeza que muito mais foste.
Antes e depois. Destes meses.

Não falávamos há bastante tempo.
Sabíamos sempre uma da outra pelos amigos comuns e muito próximos que temos.

Escrevo-te porque era isto que queria dizer-te.
E a verdade é que nunca dizemos estas coisas até ser demasiado tarde.
Nem tu deixarias que eu tas dissesse.

Aliás, se bem te conheço, sei que, onde quer que estejas, hás-de estar a rir-te, de cigarro e copo na mão, a abanar a cabeça e a dizer 'deixa-te lá mas é de coisas, rapariga...!'.

Deixo.
Não fumo um cigarro, tu sabes bem, mas bebo um copo.

E, da minha varanda estrelada, penso que o meu avô, simples pescador com poucos estudos, que partiu com a tua idade, era um sábio: duvido que soubesse quem o Thomas Campbell era mas sempre me ensinou que 'aqueles que partem nunca o fazem verdadeiramente enquanto viver alguém em cujo coração estão guardados'.

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