Avó

A MINHA AVÓ ERA UMA MULHER DO CAMPO. Passou a mocidade e a vida adulta a trabalhar no campo, na terra. Chamava-se Joaquina Pulguinhas. A minha avó escrevia cartas muito devagarinho. Com letra tremida, escrevia o nome dos netos nos embrulhos dos presentes. Em casa, viúva, reforma de trinta contos, sozinha, começou a ler livros. Não sei quanto tempo demorava a lê-los, mas sei que os lia com o esforço da atenção, palavra a palavra.

Gaivotas em Terra, de David Mourão-Ferreira, foi o livro que a minha avó deixou a meio quando morreu. Na verdade, deixou-o a meio alguns meses antes, quando deixou de reconhecer as pessoas, quando começou a dizer frases sem sentido. Assinalado por um marcador, esse livro permaneceu durante meses sem que ninguém lhe mexesse, ao lado da sua cama. Foi aí que o voltámos a encontrar quando entrámos nessa casa, onde ainda estavam todas as suas coisas, mas onde nunca mais estaria a sua presença.

Imagino agora as palavras desses contos a entrarem na minha avó e a afastarem-se no início da senilidade, no cinzento, no desconhecido, na incompreensão ou numa compreensão que será sempre inacessível, num segredo nela. Imagino essas palavras a fragmentarem-se e a transformarem-se noutra matéria, mais livres talvez. Como gaivotas. Sim, como gaivotas a planarem, a deixarem de ter limitações, a deixarem de ter idade, como num mundo mais leve e mais justo, como se deixassem de ter corpo e, de repente, tivessem todas as possibilidades do céu.

Alma
José Luís Peixoto
in Abraço


Desde a primeira vez que o ouvi, lido pelo próprio autor, na primeira Quinta de Leitura a que fui, que este texto me tocou. 

Pelos traços que da minha própria avó nele reconheci. 
Serão assim todas as avós que amamos...? É possível.
Com uma diferença: eras uma mulher do mar, do rio, da pesca. 

Mas, à falta de melhores palavras, deixo-te aqui as dele, avó.
Onde quer que estejas.
 

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