canção da foz do douro


foz do douro: vem cá, melancolia,
a lembrar prosas de raul brandão,
de gente, areia e barcos, na sombria
humidade do dia
e humildade no chão:
palmeiras desgrenhadas, ventania,
e o castelo de d. sebastião
onde as gaivotas têm cidadania.

na cantareira haviafome e havia...
um cheiro de sardinha, um cheiro a pão,
e uma mulher de luto repetia
na voz que lhe fugia
o naufrágio do irmão,
do filho ou do marido, a freguesia
tem por antigo orago s. joão
e era perto da igreja que eu vivia,

longe dos pescadores e todavia
tão perto deles todos, sendo tão
miúdo de colégio e burguesia
que até opa vestia
na páscoa da paixão.
hoje há folhas no vento, a homilia
é de outono e distância e solidão
e em névoa a foz parece que avaria.

olhar o cabedelo! quem sabia
que muita criadita havia então
que na língua de areia se despia
e na espuma emergia,
ninfa de ocasião?
ou pedalar na infância até onde ia
uma imprudência usada sem travão
e que o mercúrio-cromo traduzia!

nas calçadas modestas sempre ouvia
quem por elas passasse algum pregão
de leiteira ou padeira, ou acorria
a cigana que lia
a buena dicha e não
cheirava nada bem e eu lhe fugia.
o amolador de facas tinha um cão,
a carroça do azeite a almotolia,

e a luz vinha de rio e mar, descia
por entre as japoneiras e ao portão
respirava-se a tarde que morria
em água e maresia
e às vezes num clarão
que as vidraças dourava. e recolhia
a passarada em bando à escuridão
desenhada a nanquim da ramaria.

canção, giras em mim como um pião
que, sob a faniqueira, rodopia
e sobe entre dois dedos para a mão.
e como então zunia
agora zune em vão,
do seu bico de ferro ao coração.

Vasco Graça Moura

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